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A peste nos tempos do cólera

Atualizado: 10 de mai.


Minhas costas doem. Foram muitas horas deitado, maratonando séries e lendo artigos e reportagens. Estico meu tronco, as pernas e os braços. Olho, de relance, algumas meninas fazendo time-lapse de posições de yoga no meu instagram. Reflito um pouco e chego à conclusão de que não é para mim.



Os desejos tornam-se simulacros da vida de uma mulher grávida. Nunca foi tão gostoso e impreterível beber uma coca, comer um chocolate, fritar uma carne. As prateleiras já encontram-se vazias, até as moscas já voam com lentidão, fartas do tédio proveniente do lixo orgânico, que morreu de inanição. É muito fácil matar essas moscas; estão gordas, pesadas, cheias de sangue. Achei que eram só os mosquitos que ficavam assim.


Sem alegria na despensa, é chegada a hora de encarar a solidão das ruas por alguns escassos minutos, afinal, também preciso comer. Só percebo se está frio ou calor, dia ou noite, quando abro as venezianas do quarto. As horas passam e não importam. O tempo já não se dá a mínima, despeitado pelos reflexos indiferentes das pessoas trancafiadas. O grão de areia da ampulheta é um adorno, tal qual o fio de água que desce de uma fonte pequena num shopping qualquer.


Devidamente protegido, encaro as ruas em busca de suprimentos. Já não há quase ninguém. Cruzo com uma senhora na rua; nos olhamos de soslaio e seguimos nosso caminho. O plano estava a decorrer bem, mas a velhinha não consegue conter e tosse. O braço e o cotovelo estão na posição correta. Eu abro um sorriso sem graça, tentando passar uma mensagem de “tá tudo bem, tossir é normal”. No entanto, depois de expurgar algumas gotículas possivelmente contagiosas, a senhora me olha como se eu fosse o vilão. Fecha a cara e sai andando. Eu também sigo meu caminho.


Chegando no mercadinho, cumprimento o indiano do caixa. Vestido com máscara e luvas, o vendedor faz todo o processo do troco de forma minuciosa, como se eu estivesse julgando como alta a probabilidade de contágio naquele recinto. Agradeço pelos serviços, coloco a coca-cola embaixo do braço e sigo meu caminho de volta para casa. Nesse ínterim, passa um melancólico auto-carro por mim e o motorista descansa a cabeça apoiando a testa no volante. O veículo encontra-se quase vazio, à exceção de um rapaz, de máscara, sentado na última cadeira, a mais distante do condutor.


O ar ainda não força ninguém a tirar a própria vida, as ruas não estão tomadas por pilhas de ratos mortos, a cegueira branca ainda não acometeu nossas córneas. Respiro aliviado, ainda é o mundo real.


- Sua tosse é bronquite, é pulmão de fumante. Ainda não está doente, meu filho. Fique calmo.


Um amigo diz ao outro.


Subo as escadas, abro a coca, como um biscoito, ligo a televisão. O cólera profere uma série de bobagens em rede nacional, aplaudido pelo séquito de colerinhas que o cercam.


Eu suspiro, triste. Minhas costas doem.


Texto de Gabriel Cassar - Jornalista e escritor, residente em Portugal e nosso colunista quinzenal. =)

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