Depois das desventuras envolvendo a famigerada burocracia portuguesa, resolvi dedicar algumas linhas às partes boas da Terrinha. Afinal, nem só de documentos, ofícios e comprovativos vivem nossos gloriosos tugas.
Seguindo os conselhos do meu primo Rui, que me alertou sobre a subida exponencial de preços na cidade do Porto nos últimos anos, eu e mais dois amigos fomos atrás de um restaurante mais “pé sujo” para comer, tendo como limite a quantia exata de 5 euros a serem gastos, nada mais. De fato, se você não prestar atenção, a mesma refeição pode variar de 4 a 12 euros dependendo do lugar.
Perto de casa, avistamos o simpático Patuska Bar. Os azulejos, guardanapos e mesas não deixavam dúvidas: aquele lugar era uma tradicional birosca lusitana, com direito a um calendário carcomido do Benfica e do Porto (sim, os dois juntos).
Assim que chegamos, um senhor de cabelos grisalhos e um pouco acima do peso veio nos atender. Pela escassez de funcionários (e clientes também), presumimos que o Seu Manel (nome fictício) era o dono do lugar, fazendo as vezes de cozinheiro, garçom, gerente e todo o resto.
Cardápios em mãos, começamos a averiguar os preços e, para nossa felicidade, eles eram exatamente o que estávamos procurando. Refeições bem servidas por 3,5€, 4€, 4,5€ no máximo. Comeríamos ali, sem dúvidas.
A escolha dos pratos foi rápida e logo chamamos Seu Manel para anotar nossos pedidos. Alheiras, pernil, sopa... Cada um escolheu uma iguaria diferente. Na hora de finalizar as ordens, o português seguiu com bloco e caneta em mãos e começou a me encarar.
- Você leu o menu? – Ele me perguntou.
- Li, li sim! Por quê?
-Você não leu nada, ô pá. Saiu pedindo e nem olhou o valor.
De repente, me sinto obrigado a checar o preço da comida que eu tinha acabado de pedir. Por distração, acabei escolhendo a ÚNICA refeição do menu que passava dos 5 euros. E não só isso, ela custava mais de dez. Seria um desastre financeiro sem precedentes, uma morte rápida e inesperada para os meus mirrados bolsos, um colapso monetário só antes visto em 1929 e 2008.
Reservadamente emocionado, meu rosto fica corado e eu abro um sorriso de agradecimento ao Manel.
- O senhor tem toda a razão. Pode cancelar este meu pedido. Vou querer as alheiras de 4 euros, mesmo.
- É o que eu falo, vocês não prestam atenção em nada, estão sempre com pressa, parece até que não sabem ler.
Insultar minha capacidade intelectual soava quase como um deleite para o português que, em momento algum, sentiu-se arrependido por ter perdido alguns euros a mais naquela mesa. Uma honestidade gigantesca e pura, que chegou a me comover. Por mim, a grosseria de Seu Manel estava totalmente justificada; na hora mais importante, o caráter dele, que é o que importa, assumiu as rédeas de seu corpo e honrou suas atitudes. E a comida era boa.
Texto de Gabriel Cassar - Jornalista e escritor, residente em Portugal e nosso colunista quinzenal.
Para qualquer dúvida sobre dupla cidadania: contato@chagasecassar.com.br
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